Uma inovação brasileira está chamando atenção no mundo da alimentação. Em um cenário global de alta nos preços e escassez do cacau, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) criaram um novo tipo de chocolate que não utiliza grãos de cacau em sua composição. O ingrediente principal? Resíduos da produção de cerveja.
A proposta vai além do sabor: trata-se de uma alternativa ecológica e viável diante das dificuldades enfrentadas pela indústria tradicional do chocolate. Além de evitar o uso de uma matéria-prima cada vez mais cara e escassa, o produto oferece valor nutricional e promove o reaproveitamento de subprodutos industriais.
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Mudanças climáticas e produção comprometida
A produção de cacau em países da África Ocidental — região que fornece mais de 70% do cacau mundial — tem enfrentado grandes obstáculos. Eventos climáticos extremos, aumento das temperaturas e baixa fertilidade do solo reduziram drasticamente a produtividade das plantações.
Além disso, doenças como a “vassoura-de-bruxa” e instabilidades políticas têm afetado ainda mais a oferta global, contribuindo para o aumento dos preços e insegurança no abastecimento do produto.
Crescimento da demanda global
Enquanto a produção enfrenta limitações, o consumo de chocolate segue em alta. Isso gera um descompasso entre oferta e demanda, pressionando a cadeia de suprimentos e impulsionando a busca por alternativas tecnológicas que não dependam do cacau.
O projeto da USP: transformar resíduos em inovação
De subproduto a solução
A pesquisa foi liderada pela professora Suzana Lannes, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, em parceria com a empresa Sensus e outros colaboradores. O objetivo era criar uma alternativa ao cacau utilizando ingredientes que normalmente seriam descartados — neste caso, o resíduo do malte de cevada utilizado na fabricação da cerveja.
O produto resultante é um pó que pode substituir o cacau em diversas formulações alimentícias, incluindo barras, bebidas e sobremesas.
Como funciona a produção do chocolate alternativo
O resíduo da cerveja passa por um processo de secagem, trituração e tratamento térmico, resultando em um ingrediente com cor escura, sabor característico e perfil nutricional interessante. A semelhança com o cacau em termos de aroma e textura permite que ele seja usado como substituto em receitas tradicionais.
Principais características do novo chocolate
Sabor e textura
Apesar de não conter cacau, o novo chocolate desenvolvido pela USP apresenta um sabor com notas tostadas e amargas que lembram o chocolate amargo tradicional. A textura é igualmente satisfatória, garantindo uma experiência sensorial próxima do que o consumidor espera.
Valor nutricional
O chocolate feito com base no resíduo da cevada é rico em fibras, compostos fenólicos e outros antioxidantes naturais. Esses elementos são benéficos à saúde e contribuem para a funcionalidade do produto.
Produção mais sustentável
A proposta também reduz o impacto ambiental ao reaproveitar resíduos da indústria cervejeira, que normalmente são descartados em grandes volumes. Com isso, o produto se alinha aos princípios da economia circular e da sustentabilidade.
Vantagens para a indústria alimentícia

Redução de custos e dependência
Ao adotar essa alternativa, fabricantes de chocolates e alimentos podem diminuir a dependência do cacau, especialmente em períodos de escassez. Além disso, o uso de insumos reaproveitados tende a ser mais barato e abundante.
Aplicações variadas
O ingrediente pode ser utilizado não apenas em barras de chocolate, mas também em:
- Bolos e pães com sabor de chocolate
- Bebidas achocolatadas
- Sorvetes e sobremesas cremosas
- Produtos veganos e funcionais
Essa versatilidade amplia o leque de uso da nova matéria-prima, tornando-a interessante para diferentes segmentos.
Perspectiva do consumidor: aceitação e tendências
Consumo consciente em alta
Nos últimos anos, houve um crescimento significativo da demanda por produtos mais sustentáveis, veganos e com menor impacto ambiental. A nova formulação desenvolvida pela USP atende exatamente a esse perfil de consumidor.
Produtos à base de vegetais, que evitam ingredientes de origem animal ou de difícil obtenção, estão ganhando espaço nas prateleiras — e o chocolate sem cacau surge como mais uma dessas inovações.
Testes sensoriais e validação
Em testes iniciais, o produto teve boa aceitação entre os provadores, que destacaram o sabor equilibrado e a textura agradável. Isso demonstra que a proposta tem potencial para competir com o chocolate tradicional, especialmente entre os consumidores mais preocupados com a sustentabilidade.
Oportunidades futuras e desafios
Escalabilidade da produção
Um dos principais desafios agora é tornar a produção viável em larga escala. Para isso, será necessário investimento em tecnologia, parcerias com indústrias e padronização do processo.
A viabilidade econômica dependerá de fatores como:
- Logística para coleta e processamento do resíduo de cevada
- Custo de produção em comparação ao cacau
- Aceitação do produto pelo mercado consumidor em maior escala
Regulação e rotulagem
Outro ponto importante será definir como o produto será rotulado. Pode-se chamá-lo de “chocolate” mesmo sem conter cacau? Isso dependerá da regulamentação da Anvisa e de órgãos internacionais, já que a legislação atual define o chocolate com base na presença de derivados do cacau.
Alternativas semelhantes em outras partes do mundo
A ideia de substituir o cacau não é inédita, mas o uso de resíduos da cevada é uma inovação única. Em outros países, como Suíça e Alemanha, há pesquisas utilizando sementes de alfarroba ou leguminosas como substitutos.
No entanto, o diferencial da proposta brasileira está no reaproveitamento de um resíduo já amplamente disponível no país e com tradição na produção de cerveja, o que torna o processo mais viável economicamente.
Considerações finais
Diante da escassez global de cacau e da crescente demanda por produtos sustentáveis, a criação de um chocolate sem cacau pela USP representa um avanço significativo na inovação alimentar. Utilizando um resíduo que seria descartado, a pesquisa abre caminho para uma nova categoria de alimentos: saborosos, nutritivos e comprometidos com o meio ambiente.
Com potencial para transformar a indústria do chocolate e oferecer uma resposta às crises de abastecimento, o chocolate feito com subproduto da cerveja é uma prova de que ciência, criatividade e responsabilidade ambiental podem caminhar juntas.