A misoginia digital: de violência à rentabilidade nas redes
O avanço das redes sociais transformou radicalmente a forma como nos comunicamos, consumimos conteúdo e interagimos com o mundo. Mas junto com essa revolução surgiu um efeito colateral perigoso: o crescimento da misoginia online. O que antes era limitado a círculos restritos de ódio agora encontra público, visibilidade e — sobretudo — monetização.
Este artigo investiga como o discurso de ódio contra mulheres se tornou um mecanismo lucrativo dentro da economia digital, favorecido por algoritmos, plataformas e ausência de regulamentação efetiva.
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O que é misoginia online?
Definição e formas mais comuns
Misoginia online é o conjunto de comportamentos, discursos e atitudes hostis, violentas ou discriminatórias contra mulheres no ambiente virtual. Ela pode se manifestar por meio de:
- Comentários ofensivos e misóginos em redes sociais;
- Ameaças de violência sexual;
- Divulgação de dados pessoais (doxxing);
- Campanhas de difamação;
- Incentivo à exclusão de mulheres de espaços públicos, políticos e profissionais.
Um fenômeno global e crescente
Levantamentos da ONU e de organizações como a Plan International apontam que mais de 58% das mulheres jovens já sofreram alguma forma de violência online. No Brasil, dados do Ministério dos Direitos Humanos mostram que os ataques misóginos estão entre os crimes de ódio que mais crescem no país.
A economia da violência: como o ódio se transforma em lucro?

Conteúdos polêmicos geram engajamento
As plataformas digitais operam com base em métricas de atenção. Quanto mais visualizações, comentários e compartilhamentos um conteúdo recebe, maior é o retorno para o criador e para a própria plataforma. Nesse cenário, conteúdos polêmicos e ofensivos muitas vezes têm melhor desempenho do que os neutros ou informativos.
Criadores que exploram discursos misóginos ganham notoriedade, atraem seguidores fiéis e, com isso, aumentam suas chances de monetização.
O papel dos algoritmos
As redes sociais priorizam conteúdos que geram reações — mesmo que negativas. Isso significa que um vídeo atacando movimentos feministas ou promovendo ideias machistas pode ser amplamente promovido pelo próprio sistema da plataforma, alcançando um público maior do que conteúdos educativos ou de denúncia.
Em outras palavras, o sistema recompensa o conteúdo mais controverso, não necessariamente o mais ético ou verdadeiro.
Plataformas e a indústria do engajamento
Como os criadores monetizam o discurso de ódio?
Influenciadores que atuam dentro da chamada “manosfera” ou “machosfera” — comunidades digitais que promovem a superioridade masculina e atacam pautas femininas — muitas vezes monetizam seus vídeos ou transmissões por meio de:
- Publicidade programática: anúncios automáticos exibidos em vídeos com grande audiência.
- Doações ao vivo: seguidores enviam valores durante lives como forma de apoio.
- Cursos, mentorias e e-books pagos: com promessas de “despertar masculino” ou “recuperação de poder viril”.
- Parcerias com marcas ou produtos segmentados.
Um estudo recente publicado por entidades ligadas aos direitos humanos mostrou que canais com conteúdo misógino chegam a movimentar milhares de reais por mês, apenas com visualizações e doações.
A responsabilidade das plataformas
Embora algumas redes sociais tenham políticas contra discurso de ódio, a aplicação dessas regras costuma ser falha. Muitas vezes, vídeos claramente ofensivos permanecem disponíveis por semanas ou meses, acumulando receita e audiência.
Além disso, há pouca transparência sobre como os algoritmos priorizam ou penalizam conteúdos de ódio, o que dificulta o controle externo e a responsabilização das empresas.
Impactos sociais e culturais da misoginia digital
A naturalização da violência contra mulheres
O consumo frequente de conteúdo misógino contribui para a banalização da violência simbólica e psicológica contra as mulheres, normalizando comportamentos abusivos e encorajando seguidores a reproduzirem essas atitudes em seus próprios círculos sociais — virtuais e físicos.
Silenciamento e retração feminina
Mulheres que atuam em áreas públicas, como política, jornalismo ou ativismo, relatam pressão constante para abandonarem as redes sociais. As campanhas coordenadas de ataques são projetadas justamente para desgastar emocionalmente e expulsar essas vozes do debate público.
Prejuízos à saúde mental
A exposição contínua ao discurso de ódio tem efeitos psicológicos sérios, que vão de ansiedade e depressão a crises de pânico e ideação suicida. Isso afeta não apenas figuras públicas, mas qualquer mulher que se expõe online.
O que está sendo feito para combater essa realidade?
Iniciativas governamentais no Brasil
O governo federal tem trabalhado em propostas de regulamentação das plataformas digitais, com foco na transparência algorítmica e responsabilização por conteúdos de ódio. Projetos como o PL das Fake News e políticas de enfrentamento à violência digital contra mulheres avançam no Congresso Nacional.
Pressão da sociedade civil
Organizações feministas e coletivos digitais desenvolvem campanhas para denunciar canais tóxicos, cobrar as empresas por moderação mais eficaz e oferecer apoio às vítimas. Algumas iniciativas incluem:
- Denúncia sistematizada de conteúdos misóginos;
- Monitoramento de discursos de ódio em tempo real;
- Orientações jurídicas e psicológicas para vítimas.
Movimentos globais de regulação
Fora do Brasil, a União Europeia implementou a Lei dos Serviços Digitais (DSA), que exige maior responsabilidade das big techs no combate ao discurso de ódio e na proteção de grupos vulneráveis.
Caminhos possíveis para uma internet mais segura
Transparência algorítmica
É essencial que as plataformas revelem como seus algoritmos funcionam e permitam auditoria externa para avaliar se há reforço indevido de discursos nocivos.
Desmonetização de canais que promovem violência
Uma das medidas mais eficazes seria remover a possibilidade de lucro de criadores que violam políticas de conteúdo. Sem incentivo financeiro, o discurso de ódio tende a perder alcance.
Educação digital
Promover a alfabetização midiática entre os usuários, especialmente jovens, é fundamental para formar cidadãos críticos, capazes de identificar manipulações, discursos falsos e perigosos.
Considerações finais
A misoginia digital é um fenômeno complexo que envolve tecnologia, cultura, economia e desigualdade de gênero. O que antes era apenas um problema moral agora se revela também um modelo de negócios perverso, que transforma o sofrimento de mulheres em audiência e lucro.
Romper esse ciclo exige ação coordenada entre sociedade, empresas e governo. Regular plataformas, desincentivar economicamente o discurso de ódio e apoiar as vítimas são medidas urgentes para que a internet seja, de fato, um espaço de liberdade e respeito.