A violência doméstica é uma das manifestações mais crónicas e devastadoras da desigualdade de gênero no Brasil. Além dos impactos psicológicos e sociais, essa violência costuma deixar marcas físicas profundas, especialmente na região craniofacial das vítimas. Em resposta a essa realidade, foi sancionada a Lei nº 15.116/2025, que cria o Programa de Reconstrução Dentária para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica, a ser implementado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A nova legislação estabelece um marco inédito de acolhimento e reparação do dano físico e simbólico causado por agressores, permitindo que essas mulheres possam recuperar a dignidade e a qualidade de vida através do acesso integral e gratuito ao tratamento odontológico.
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Danos recorrentes e silenciosos
Estudos apontam que uma parcela significativa dos casos de agressão física cometidos em contextos de violência doméstica afeta regiões da face, inclusive estruturas dentárias, ósseas e musculares. Em muitos casos, as vítimas apresentam fraturas maxilares, perda de dentes, deslocamentos mandibulares e outras lesões complexas que, além da dor, impactam profundamente a autoestima e as funções mastigatórias e fonatórias.
Invisibilidade nas políticas de saúde
Apesar da alta prevalência desse tipo de lesão, a agenda pública da saúde bucal não contemplava, até então, uma política específica voltada para a reabilitação odontológica de mulheres agredidas. A nova legislação, portanto, rompe com um histórico de omissão e simboliza um passo civilizatório em direção ao cuidado integral.
Lei 15.116/2025: estrutura e abrangência
O que prevê a legislação
O texto da nova lei assegura que todas as mulheres vítimas de violência doméstica que apresentem sequelas na região bucal ou facial tenham acesso gratuito a tratamentos odontológicos especializados. Isso inclui desde intervenções de urgência e reabilitação funcional até procedimentos estéticos e a confecção de próteses dentárias.
Critérios de acesso
Para usufruir do programa, a vítima deverá comprovar a ocorrência da violência, conforme regulamento que será editado pelo Executivo. Essa comprovação poderá ser feita através de boletim de ocorrência, medida protetiva ou atestado de instituição especializada, como casas-abrigo ou centros de referência de atendimento à mulher.
Rede de atendimento
Os procedimentos serão realizados na rede pública de saúde bucal do SUS, em unidades próprias ou conveniadas, como centros de especialidades odontológicas, hospitais universitários e serviços ambulatoriais de odontologia.
Tramitação e fundamentação legislativa
Origem do projeto de lei
O projeto de lei que deu origem à nova norma foi apresentado pela deputada Simone Marquetto (MDB-SP) e recebeu apoio suprapartidário em ambas as casas do Congresso Nacional. A relatoria no Senado ficou a cargo da senadora Dra. Eudócia (PL-AL), que enfatizou a urgência de políticas de reparação e acolhimento para mulheres que têm sua integridade violada.
Sancionada sem vetos
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou integralmente a proposta, que entrou em vigor com sua publicação no Diário Oficial da União em 3 de abril de 2025. Agora, a expectativa é pela edição do decreto regulamentador que definirá os fluxos de atendimento, orçamento e a formação das equipes.
Aspectos sociais e simbólicos do tratamento dentário
Reconstruir mais do que dentes
O acesso à reabilitação bucal vai muito além da funcionalidade. Trata-se de um processo simbólico de devolução da autonomia, da autoestima e da capacidade de reestabelecer os laços sociais e afetivos. Mulheres que sofrem violência doméstica costumam ter sua imagem deteriorada, sendo o tratamento uma forma concreta de reabilitação também subjetiva.
Retorno ao mercado de trabalho
O impacto do novo programa se estende à dimensão econômica, pois muitas vítimas deixam de buscar emprego ou são afastadas de funções que exigem interação pública devido às sequelas faciais. A reconstrução dentária, nesse contexto, representa também uma oportunidade de reinserção profissional.
Implementação e desafios operacionais

Necessidade de formação especializada
Um dos grandes desafios será capacitar cirurgiões-dentistas para o atendimento humanizado e multidisciplinar às vítimas. Isso envolve não apenas técnica, mas sensibilidade social, compreensão das violências estruturais e articulação com a rede de proteção à mulher.
Integração com políticas públicas
O programa precisa dialogar com outras iniciativas de enfrentamento à violência de gênero, como a Casa da Mulher Brasileira, os centros de referência e as secretarias de assistência social e direitos humanos, assegurando acolhimento completo.
Orçamento e logística
A implementação requer aporte financeiro específico, atualização dos protocolos clínicos e investimentos em infraestrutura, como laboratórios de próteses e centros de diagnóstico por imagem.
Conclusão
A Lei 15.116/2025 inaugura um novo paradigma no enfrentamento da violência contra a mulher, ao reconhecer que o cuidado integral inclui a reabilitação da saúde bucal. O Programa de Reconstrução Dentária é um instrumento não apenas de acesso ao SUS, mas de justiça, reparo e retomada da dignidade. Que sua efetivação seja acompanhada de fiscalização social, formação profissional e compromisso político duradouro.













