Um novo campo de violência de gênero
O crescimento acelerado do uso da internet e das redes sociais trouxe benefícios inegáveis à comunicação e à informação. No entanto, também abriu espaço para o surgimento de novas formas de violência, muitas delas direcionadas especialmente contra mulheres. A chamada ciberdelinquência de gênero é hoje uma das mais graves expressões da desigualdade nas plataformas digitais.
Esse tipo de violência virtual se manifesta por meio de práticas como perseguições online, vazamento de fotos íntimas, chantagens, discursos de ódio, ameaças e humilhações públicas com base na identidade de gênero da vítima. Embora cada vez mais comum, ainda carece de uma resposta jurídica plenamente eficaz no Brasil.
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O que é ciberdelinquência de gênero?
Definição e abrangência
Ciberdelinquência de gênero é um termo que engloba comportamentos ofensivos ou criminosos cometidos por meio da internet, aplicativos de mensagem, redes sociais e outras tecnologias digitais, com o objetivo de atingir mulheres ou pessoas que se identificam com o gênero feminino.
Essas práticas muitas vezes têm raízes em estereótipos de gênero e em estruturas patriarcais. Diferentemente de outros crimes cibernéticos, a ciberdelinquência de gênero possui motivações de dominação, controle e humilhação social da mulher.
Principais manifestações
Divulgação de imagens íntimas sem consentimento
Conhecida popularmente como “pornografia de vingança”, consiste no vazamento de conteúdos íntimos com o objetivo de prejudicar a vítima.
Perseguição e assédio digital
Inclui envio incessante de mensagens, criação de perfis falsos, rastreamento de atividades online e ameaças constantes.
Discurso de ódio e misoginia virtual
A disseminação de mensagens machistas, misóginas ou sexistas, sobretudo contra figuras públicas do sexo feminino, também se enquadra nesse cenário.
Legislação brasileira: quais os instrumentos existentes?

Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014)
Esse marco regulatório estabelece diretrizes para o uso da internet no Brasil. Ele garante direitos como a privacidade, a proteção de dados pessoais e a liberdade de expressão. Embora seja uma lei essencial para nortear o uso responsável da rede, ela não foi pensada para lidar especificamente com a violência de gênero online.
Lei Carolina Dieckmann (Lei nº 12.737/2012)
Inspirada em um caso real de invasão de dispositivo eletrônico, essa lei passou a punir a invasão de computadores e o roubo de informações pessoais. Foi um passo importante, mas seu alcance é limitado quando se trata de assédio moral e sexual direcionado por meio das redes.
Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei nº 13.709/2018)
A LGPD criou regras sobre o uso de dados pessoais e trouxe avanços significativos no controle que os cidadãos têm sobre suas informações. Entretanto, sua aplicação em casos de exposição de dados íntimos ainda depende de aprimoramentos e jurisprudência mais consolidada.
Lei Lola (Lei nº 13.642/2018)
Essa norma deu à Polícia Federal competência para investigar crimes contra mulheres cometidos pela internet. Ela reconhece formalmente a misoginia como crime passível de investigação federal, o que representa uma vitória importante na luta por mais segurança digital. No entanto, sua efetividade esbarra em limitações orçamentárias, falta de pessoal e baixa especialização das equipes envolvidas.
Onde estão os principais desafios?
Dificuldade na identificação dos agressores
Grande parte dos autores de ciberdelinquência de gênero age anonimamente, o que dificulta a localização e responsabilização. O rastreamento exige recursos técnicos que nem sempre estão disponíveis às polícias civis ou mesmo à Polícia Federal.
Pouca tipificação penal
Não há no Código Penal brasileiro uma seção específica voltada para crimes de gênero no ambiente digital. A falta de nomenclaturas e descrições legais atualizadas dificulta a denúncia e a punição dos infratores.
Falta de estrutura especializada
A ausência de delegacias especializadas em crimes cibernéticos, com pessoal capacitado para lidar com crimes de ódio de gênero, afeta diretamente a capacidade do Estado em garantir proteção rápida e eficaz às vítimas.
Iniciativas e soluções em andamento
Propostas de novos projetos de lei
Tramitam no Congresso Nacional diversas propostas que buscam criminalizar de forma mais específica as ações de violência online contra mulheres, incluindo a criação de penas mais duras para a divulgação de imagens íntimas sem consentimento e o assédio virtual com motivação de gênero.
Ampliação da atuação do Ministério Público
Órgãos como o Ministério Público têm atuado com mais intensidade em casos de exposição de vítimas, exigindo plataformas a removerem conteúdo abusivo e identificarem usuários que violam normas legais.
Plataformas mais responsáveis
Empresas de tecnologia vêm sendo pressionadas a desenvolver mecanismos mais eficazes de denúncia, bloqueio de conteúdo e rastreamento de abusadores, além de reverem suas políticas de moderação com recorte de gênero.
Como proteger as vítimas?
Atendimento psicológico e jurídico
Mulheres vítimas de violência digital precisam de apoio multidisciplinar. É essencial a criação e ampliação de centros de acolhimento com psicólogos, advogados e assistentes sociais.
Incentivo à denúncia
Campanhas educativas e de conscientização devem mostrar às mulheres que denunciar é um ato de coragem e um direito. Muitas vítimas deixam de procurar ajuda por vergonha ou medo de retaliações.
Rede de apoio digital
Coletivos e movimentos feministas têm criado redes de solidariedade online, onde vítimas recebem apoio, orientação e visibilidade. O papel dessas iniciativas é fundamental para pressionar o Estado e dar voz às afetadas.
Casos emblemáticos e jurisprudência
Vários casos envolvendo figuras públicas e mulheres comuns têm ajudado a consolidar a discussão sobre a ciberdelinquência de gênero no Brasil. Em algumas situações, decisões judiciais já obrigaram plataformas a retirar conteúdo, indenizar vítimas e cooperar com investigações criminais.
Caminhos para o futuro
Construção de políticas públicas específicas
É urgente que os governos — federal, estaduais e municipais — criem políticas públicas voltadas à proteção da mulher no ambiente digital. Isso inclui desde campanhas de conscientização até a estruturação de delegacias e ministérios com foco no combate à violência de gênero online.
Educação digital com recorte de gênero
Desde os primeiros anos escolares, é preciso ensinar sobre uso responsável da internet e o respeito às diferenças. Levar a discussão de gênero para dentro do ambiente educacional é essencial para formar cidadãos conscientes e empáticos.
Cooperação internacional
Como a internet não conhece fronteiras, o Brasil deve colaborar com outros países na construção de tratados e sistemas de cooperação para combater crimes digitais transnacionais que tenham como alvo mulheres.
Considerações finais
A ciberdelinquência de gênero representa um desafio urgente para o sistema jurídico, a sociedade e as instituições democráticas. Embora o Brasil tenha avançado na criação de marcos legais, ainda falta uma resposta estruturada e integrada para enfrentar a violência digital que atinge tantas mulheres.
Mais do que punir os agressores, é necessário construir uma cultura digital que valorize a igualdade, a empatia e o respeito. O combate à violência de gênero online é, antes de tudo, uma luta por dignidade e cidadania.













