Uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) reacendeu o debate sobre os limites das medidas judiciais para forçar o cumprimento de obrigações civis. O tribunal declarou constitucional a possibilidade de apreensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e do passaporte de cidadãos inadimplentes. A medida está prevista no artigo 139, inciso IV, do Código de Processo Civil (CPC), mas sua legalidade vinha sendo questionada até então.
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O que motivou a discussão
A controvérsia surgiu a partir de decisões judiciais que determinaram a restrição de documentos pessoais de devedores com o objetivo de obrigá-los a quitar suas dívidas. As ações se basearam na interpretação de que a Justiça pode adotar mecanismos atípicos de coerção sempre que os meios tradicionais de execução – como penhora de bens ou bloqueio de contas – se mostrarem ineficazes.
O que diz o artigo 139, IV, do Código de Processo Civil
Base legal para medidas coercitivas
O artigo 139, inciso IV, do CPC autoriza o juiz a aplicar medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para assegurar o cumprimento das ordens judiciais. Em outras palavras, o juiz pode tomar decisões fora do padrão tradicional de execução, desde que essas medidas sejam proporcionais, razoáveis e não violem direitos fundamentais.
Exemplo de medidas atípicas
Entre as medidas atípicas previstas pela legislação, estão:
- A suspensão de carteiras de habilitação;
- A retenção de passaportes;
- A proibição de participação em concursos públicos;
- A imposição de restrições a cartões de crédito de alto valor.
Decisão do STF: como foi o julgamento
Resultado do julgamento
Por ampla maioria – 10 votos a 1 – os ministros do STF decidiram que o artigo 139, IV, do CPC é compatível com a Constituição. Isso significa que a apreensão de documentos como CNH e passaporte pode ser usada como forma de pressão legítima para o cumprimento de dívidas, desde que observadas algumas garantias.
Voto divergente
O único voto contrário foi do ministro Edson Fachin, que argumentou que a medida fere o direito à liberdade e à dignidade humana. Para ele, limitar o direito de ir e vir como forma de cobrar uma dívida civil seria um retrocesso incompatível com o Estado Democrático de Direito.
Em quais situações a medida pode ser aplicada

Casos específicos e análise individual
A decisão do STF não autoriza uma aplicação indiscriminada da medida. Os ministros deixaram claro que a adoção de medidas atípicas deve ser feita caso a caso. O juiz responsável deve analisar se o devedor realmente está se esquivando de pagar, mesmo tendo condições financeiras para isso.
Quando é permitido apreender CNH e passaporte
- Quando o devedor tem patrimônio ou renda suficiente, mas não cumpre voluntariamente a obrigação;
- Se houver evidências de tentativa de ocultação de bens;
- Quando outros meios de execução já foram tentados sem sucesso;
- Se a medida for proporcional ao valor da dívida.
Limites estabelecidos pela Corte
Proteção de direitos fundamentais
O STF estabeleceu que a aplicação da medida deve preservar direitos constitucionais, como o direito ao trabalho e o direito de locomoção. Isso significa que a suspensão de uma CNH, por exemplo, não pode ser aplicada se o devedor a utiliza profissionalmente, como motoristas de aplicativo, caminhoneiros ou taxistas.
Restrições à aplicação da medida
- A CNH não pode ser suspensa se for indispensável para o sustento do devedor;
- O passaporte não pode ser apreendido se for necessário para tratamento médico ou trabalho no exterior;
- A medida não pode ser usada em dívidas de pequeno valor ou quando houver risco de violação de garantias individuais.
Efeitos da decisão para credores e devedores
Fortalecimento do poder de cobrança
Para os credores, a decisão representa uma importante ferramenta para garantir que decisões judiciais não sejam ignoradas. Em um cenário em que muitas execuções se arrastam por anos, a possibilidade de aplicação de medidas mais incisivas pode acelerar a quitação de dívidas.
Alerta para inadimplentes
Já os devedores devem ficar atentos: a simples inadimplência não levará automaticamente à apreensão de documentos, mas a recusa injustificada em pagar dívidas pode ter consequências mais severas do que antes.
Projetos de lei visam regulamentar a medida
Proposta em análise na Câmara dos Deputados
Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 604/2023, que pretende restringir o uso de medidas coercitivas como a apreensão de documentos. O texto proíbe, por exemplo, a suspensão da CNH de devedores que utilizam o veículo como meio de trabalho e veda a proibição de participar de concursos públicos por inadimplência civil.
Objetivo do PL
A proposta busca equilibrar a proteção dos direitos dos credores com a preservação dos direitos fundamentais dos devedores. A intenção é garantir que a medida seja usada com cautela e apenas em situações realmente justificáveis.
O que dizem os especialistas
Posicionamentos jurídicos
Juristas defendem que a medida, embora polêmica, pode ser eficaz se aplicada corretamente. Segundo eles, é importante que o Judiciário utilize todos os mecanismos possíveis para dar efetividade às decisões, desde que respeitados os direitos individuais.
Outros especialistas alertam para o risco de transformar medidas de cobrança em punições desproporcionais. Para eles, é preciso evitar que o Judiciário atue como agente de coerção sem limites, o que pode prejudicar cidadãos em situação de vulnerabilidade.
Perguntas frequentes
Posso ter a CNH suspensa por qualquer dívida?
Não. A medida só será aplicada se a dívida estiver sendo cobrada judicialmente e se houver indícios de que o devedor está se esquivando do pagamento de forma deliberada.
A medida pode ser usada em dívidas trabalhistas ou fiscais?
A decisão do STF trata especificamente de dívidas de natureza civil. Casos relacionados a débitos trabalhistas ou tributários seguem regras diferentes.
Como recorrer caso a CNH ou o passaporte sejam apreendidos?
É possível apresentar recurso no próprio processo, demonstrando a desproporcionalidade da medida ou a violação de direitos fundamentais. O devedor também pode apresentar provas de que a CNH ou o passaporte são indispensáveis para sua subsistência.
Considerações finais
A decisão do Supremo Tribunal Federal de autorizar a apreensão da CNH e do passaporte como forma de cobrança judicial marca uma nova fase na efetivação do cumprimento das obrigações civis. Embora represente um avanço para os credores, ela também exige equilíbrio, bom senso e respeito aos direitos fundamentais dos devedores.
O Judiciário, agora respaldado pelo STF, tem em mãos uma ferramenta poderosa — mas que deve ser usada com responsabilidade, para garantir justiça sem desrespeitar a dignidade humana.












