A cena é comum: uma pessoa toma determinado remédio e sente alívio imediato, enquanto outra, com o mesmo diagnóstico, não nota melhora alguma — ou até passa mal. Essa diferença de resposta a medicamentos intriga pacientes, médicos e pesquisadores há décadas. O que explica essa diversidade de efeitos?
Cientistas, farmacêuticos e médicos têm respostas cada vez mais precisas. Genética, alimentação, uso de outros fármacos e até o funcionamento do fígado ajudam a definir como o organismo absorve e responde aos princípios ativos.
A seguir, entenda os principais fatores que fazem com que o mesmo medicamento aja de maneiras distintas em diferentes organismos.
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Genética: o código que define reações individuais
Farmacogenética e suas descobertas
A principal razão pela qual remédios funcionam de maneira diferente entre indivíduos está no código genético. Cada pessoa tem variações em seus genes que determinam como o organismo metaboliza determinadas substâncias. A farmacogenética é o campo da ciência que estuda como essas diferenças genéticas afetam a ação dos medicamentos no corpo humano. Com esse conhecimento, já é possível prever, em muitos casos, se um paciente terá resposta boa, ruim ou nenhuma a determinado fármaco.
Enzimas e metabolismo
Grande parte dessa diferença vem da atuação das enzimas do fígado, especialmente as da família citocromo P450 (como CYP2D6, CYP2C9, CYP3A4). Essas enzimas são responsáveis por “quebrar” os medicamentos no organismo. Algumas pessoas possuem versões genéticas dessas enzimas que trabalham mais rápido ou mais devagar. Isso altera o tempo que o remédio permanece no corpo, sua eficácia e o risco de efeitos colaterais. Por exemplo, quem metaboliza rápido demais pode eliminar o medicamento antes que ele faça efeito; já quem o faz lentamente pode acumular substâncias tóxicas.
Exemplo prático: antidepressivos
Certos antidepressivos, como a fluoxetina, dependem diretamente da ação da CYP2D6 para serem metabolizados. Pessoas com variações dessa enzima podem sentir resultados muito diferentes, o que exige ajuste de dose ou até troca de medicamento.
Outras características biológicas que influenciam
Idade, peso e sexo
Além da genética, características fisiológicas como idade, peso corporal e sexo influenciam diretamente a forma como o remédio se comporta. Crianças e idosos costumam ter metabolismos mais lentos e sistemas de excreção menos eficientes, o que pode aumentar o risco de efeitos adversos. Pessoas com mais gordura corporal podem reter mais medicamentos lipossolúveis, alterando sua eficácia. O sexo biológico também interfere: homens e mulheres têm diferenças hormonais e metabólicas que afetam absorção, distribuição e eliminação dos fármacos.
Funções hepáticas e renais
Pacientes com problemas no fígado ou nos rins apresentam grandes variações na resposta aos medicamentos. O fígado é responsável pelo metabolismo, enquanto os rins filtram e eliminam o que não será utilizado. Uma falha nesses órgãos pode fazer com que a droga permaneça por mais tempo no organismo, causando reações indesejadas.
Hábitos de vida e comportamentos que interferem no tratamento

Alimentação
Alguns alimentos interagem diretamente com a ação dos medicamentos. Um exemplo clássico é a toranja (grapefruit), que inibe enzimas hepáticas e pode aumentar perigosamente a concentração de certos remédios no sangue. Também há casos de nutrientes que competem com a absorção do medicamento, como o cálcio, que interfere na absorção de antibióticos como a tetraciclina.
Álcool, cigarro e outras substâncias
O uso de álcool pode potencializar ou inibir o efeito de diversos medicamentos. Já o cigarro induz enzimas como a CYP1A2, alterando a resposta a antidepressivos, antipsicóticos e outros remédios. Suplementos naturais e fitoterápicos também não ficam de fora: o uso de erva-de-são-joão, por exemplo, pode reduzir o efeito de anticoncepcionais e imunossupressores.
Nível de estresse e sono
O funcionamento do organismo também responde a estados emocionais e comportamentais. Pessoas com altos níveis de estresse ou privação de sono podem apresentar respostas atípicas aos medicamentos, já que hormônios como o cortisol afetam o metabolismo.
Interações medicamentosas e polifarmácia
Em pessoas que tomam vários remédios ao mesmo tempo, como idosos ou pacientes com doenças crônicas, as chances de interações aumentam. Alguns medicamentos podem potencializar o efeito de outros, enquanto alguns o reduzem. Há ainda interações que não são previsíveis sem acompanhamento médico e farmacêutico rigoroso. A polifarmácia pode levar à chamada “cascata medicamentosa”, em que os efeitos colaterais de um remédio são confundidos com uma nova doença, levando à prescrição de outro medicamento — o que piora ainda mais a situação.
Como a medicina personalizada vem mudando esse cenário
Testes genéticos no tratamento
A medicina personalizada usa informações genéticas para prever a resposta de cada indivíduo a medicamentos específicos. Com um simples teste de DNA, é possível descobrir se a pessoa é metabolizador lento, normal ou rápido para determinados fármacos. Isso já é comum em áreas como oncologia, psiquiatria e cardiologia.
Escolha de medicamentos mais adequados
A partir da análise genética, o médico pode escolher não apenas o melhor remédio, mas também a dose mais segura. Isso evita tentativas e erros que podem comprometer a saúde do paciente. Em alguns países, planos de saúde já cobrem esses testes em casos específicos.
Desafios da medicina personalizada no Brasil
Apesar do avanço científico, a aplicação prática ainda é limitada no Brasil. O alto custo dos testes genéticos, a falta de cobertura pelos planos e o desconhecimento por parte de muitos profissionais dificultam a popularização da medicina personalizada. Outro ponto sensível é a privacidade: como os dados genéticos são extremamente pessoais, há um debate sobre como devem ser armazenados e protegidos.
O que o paciente pode fazer
A melhor estratégia é manter um canal de comunicação claro com o médico. Informar sobre todos os medicamentos em uso, inclusive fitoterápicos, vitaminas e suplementos, é essencial. Relatar reações inesperadas ou ausência de efeito também ajuda o profissional a tomar decisões mais eficazes. Caso tenha histórico familiar de reações adversas ou múltiplas falhas de tratamento, pode valer a pena discutir a possibilidade de um teste genético.
O futuro da prescrição: precisão e tecnologia
Com os avanços em big data, inteligência artificial e sequenciamento genético, espera-se que a prescrição de medicamentos se torne cada vez mais precisa. Sistemas integrados poderão cruzar informações clínicas, laboratoriais e genéticas para sugerir o tratamento ideal. A expectativa é que, em alguns anos, as reações imprevisíveis aos remédios se tornem exceção, não a regra.
Considerações finais
A forma como um medicamento age no corpo humano é muito mais complexa do que parece. Diversos fatores — desde o DNA até o que se come ou como se dorme — interferem diretamente no resultado do tratamento. Por isso, não é surpresa que uma mesma dose funcione para alguns e falhe para outros. O avanço da medicina personalizada traz esperança de terapias mais seguras e eficazes, mas o papel ativo do paciente segue indispensável. Com informação, diálogo e acompanhamento, é possível alcançar um tratamento verdadeiramente individualizado e eficaz.













