Um livro que o Brasil não pôde ler
Quando o ex-prefeito Acir Filló, de Ferraz de Vasconcelos (SP), decidiu relatar sua experiência atrás das grades, talvez não imaginasse que seu livro se tornaria um dos mais controversos do país. Publicado em 2019 e rapidamente retirado de circulação por ordem judicial, Diário de Tremembé – O Presídio dos Famosos mistura memórias pessoais, relatos de bastidores e críticas ao sistema prisional paulista.
Apesar de ter sido banida, a obra ganhou status de “livro proibido” e circula de forma restrita entre colecionadores e curiosos, que buscam entender o que há por trás das paredes do presídio que abriga alguns dos criminosos mais conhecidos do Brasil.
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Quem é o autor e como surgiu o “Diário de Tremembé”
O político que virou escritor dentro da prisão
Acir Filló, empresário e ex-prefeito, foi preso por crimes ligados à corrupção e lavagem de dinheiro. Durante o cumprimento da pena na Penitenciária II de Tremembé, uma das unidades mais conhecidas do interior paulista, decidiu registrar seu cotidiano e o de outros presos em um diário.
A experiência, que começou como um exercício pessoal de reflexão, acabou se transformando em livro. Nele, Filló assume a voz de um observador privilegiado do ambiente carcerário, descrevendo a rotina de detentos famosos, as relações de poder entre os presos e as contradições do sistema penitenciário.
O presídio dos “famosos”
A Penitenciária de Tremembé ficou conhecida por receber condenados de grande repercussão midiática, como Alexandre Nardoni, Lindemberg Alves, Roger Abdelmassih e Gil Rugai. O local, que deveria ser apenas mais uma unidade de segurança, ganhou apelido de “presídio VIP” por abrigar réus e condenados de classes médias e altas.
É nesse cenário que se desenrola a narrativa de Filló, revelando bastidores e histórias que o público nunca viu.
O conteúdo do livro e suas revelações
A vida por trás das grades
No Diário de Tremembé, o autor descreve o presídio como um microcosmo da sociedade, com hierarquias, alianças e privilégios. Ele relata desde as regras internas impostas entre os presos até as atividades diárias, como o trabalho em oficinas e o convívio no pátio.
Filló também apresenta personagens conhecidos da opinião pública, mencionando como cada um se adaptou ao ambiente carcerário. Sem citar nomes de forma ofensiva, ele traça perfis comportamentais e conta curiosidades que ajudam a entender a rotina no “presídio dos famosos”.
Denúncias e críticas ao sistema
O autor aproveita o relato para criticar o excesso de prisões preventivas, a falta de políticas de ressocialização e as desigualdades do sistema carcerário brasileiro. Ele argumenta que o encarceramento em massa é um dos grandes problemas do país e que Tremembé é uma exceção dentro de um sistema falido.
Filló descreve a unidade como uma prisão relativamente organizada, onde os detentos trabalham, estudam e mantêm uma rotina de disciplina — o oposto da realidade encontrada em boa parte dos presídios brasileiros.
Um olhar jornalístico
Antes da carreira política, Filló atuou por mais de dez anos como repórter. Essa formação transparece na escrita do livro, que combina observação detalhada e linguagem de reportagem, embora muitos críticos considerem o texto irregular e pouco literário.
O autor afirma que o objetivo era dar voz aos detentos e expor o funcionamento interno do sistema prisional, sem glamourizar o crime nem buscar autopromoção.
Por que o livro foi proibido
A decisão da Justiça
Poucos meses após o lançamento, o livro foi suspenso por determinação judicial. A decisão partiu da Vara de Execuções Criminais de Taubaté, sob o argumento de que o autor havia violado a privacidade de outros detentos, ao expor nomes e situações sem autorização prévia.
O Ministério Público de São Paulo pediu a retirada da obra de circulação alegando que ela poderia comprometer a segurança interna do presídio e provocar constrangimento às pessoas citadas. A juíza responsável entendeu que o conteúdo ultrapassava o limite da liberdade de expressão e feria direitos individuais.
O preço da censura
Desde então, o Diário de Tremembé passou a ser considerado um livro “raro”. Versões físicas e digitais são vendidas de forma clandestina, chegando a custar até R$ 500 em plataformas informais. O episódio reacendeu o debate sobre liberdade de imprensa, censura prévia e direito à privacidade.
Bastidores e personagens do “presídio dos famosos”
A narrativa de Filló mistura observações pessoais com episódios marcantes. Ele relata, por exemplo, como presos célebres trabalham dentro da penitenciária em funções simples, como limpeza, cozinha e marcenaria. O autor destaca que o trabalho é concorrido porque oferece redução da pena e uma rotina mais leve.
Outros trechos abordam o convívio entre condenados por diferentes crimes e a presença constante de hierarquias informais, onde alguns ganham respeito e outros enfrentam rejeição. Filló também descreve como o presídio se torna, em muitos momentos, um ambiente de aprendizado, onde pessoas com trajetórias distintas convivem lado a lado.
Polêmica e impacto cultural
Liberdade de expressão ou invasão de privacidade?
A proibição da obra dividiu opiniões. Defensores argumentam que o autor tem direito de relatar sua experiência, especialmente em um país onde o sistema prisional é cercado de opacidade. Já os críticos alegam que o livro explora a imagem de pessoas condenadas, sem consentimento, e pode colocar em risco a segurança de funcionários e internos.
A influência na cultura popular
O interesse pelo livro voltou com força após o lançamento da série “Tremembé”, inspirada em parte nos relatos de Filló. A produção trouxe novamente o debate sobre o conteúdo do livro e seu impacto no imaginário popular. O autor, em entrevistas recentes, afirmou que parte das histórias mostradas na série são reais, enquanto outras foram adaptadas.
O legado e as reflexões sobre o sistema prisional
O caso do Diário de Tremembé vai além da polêmica em torno de sua proibição. Ele expõe as contradições do sistema penitenciário brasileiro: de um lado, a necessidade de transparência e debate público; de outro, a preservação da dignidade e da segurança dos detentos.
O livro também reabre a discussão sobre como a sociedade enxerga o cárcere e os indivíduos que o habitam. Para muitos leitores, a obra funciona como um retrato incômodo de um universo fechado, que reflete desigualdades sociais e falhas estruturais.
Considerações finais
Mesmo proibido, Diário de Tremembé continua despertando curiosidade e debate. Escrito dentro de um dos presídios mais famosos do país, o livro revela a rotina, as tensões e os bastidores de um ambiente pouco conhecido, além de provocar reflexões sobre justiça, poder e humanidade.
Acir Filló pode não ter criado uma obra literária refinada, mas conseguiu algo raro: transformar seu relato pessoal em um símbolo de resistência, censura e transparência. E, ainda que a Justiça tenha tentado silenciá-lo, o livro segue vivo — nas discussões, nas redes e na memória de quem busca entender o que realmente acontece por trás dos muros de Tremembé.
