O livro que virou caso judicial no Brasil
A estreia da série “Tremembé”, no Prime Video, reacendeu a curiosidade do público sobre os bastidores do presídio de mesmo nome, conhecido por abrigar presos famosos, entre eles Suzane von Richthofen, condenada pelo assassinato dos pais em 2002. No entanto, a produção também trouxe à tona uma nova polêmica: o livro que inspirou a série foi suspenso duas vezes pela Justiça.
A obra, escrita pelo jornalista Ullisses Campbell, reúne relatos e investigações sobre o cotidiano da penitenciária de Tremembé, incluindo personagens conhecidos da crônica policial. Mas a publicação enfrentou resistência judicial, sendo retirada de circulação em dois momentos distintos. A seguir, entenda o que motivou essas decisões e como o caso reacende o debate sobre limites da liberdade de expressão e o direito à imagem de pessoas condenadas.
Leia Mais:
Streaming pirata: operação internacional leva à suspensão de serviços no Brasil
A origem da obra e sua relação com a série
O autor, Ullisses Campbell, é conhecido por livros de não-ficção e reportagens investigativas. Em seu trabalho sobre o presídio de Tremembé, ele expôs o ambiente carcerário e as histórias de presos de alta notoriedade, como Suzane von Richthofen e os irmãos Cravinhos.
O livro foi adaptado para o audiovisual e serviu de base para a série “Tremembé”, lançada em 2025 pelo Prime Video. A produção dramatiza episódios inspirados em fatos reais e examina a linha tênue entre culpa, fama e esquecimento no sistema prisional.
A ligação entre a obra e a série aumentou o interesse do público e, consequentemente, reacendeu as discussões sobre os limites éticos e jurídicos do uso da imagem de condenados em produções comerciais.
As duas suspensões judiciais
A primeira suspensão ocorreu em 2019, antes mesmo da ampla divulgação da obra. A Justiça de São Paulo acatou o pedido da defesa de Suzane von Richthofen, que alegou violação de direitos de imagem e privacidade. Segundo a decisão, o livro causava “exposição indevida” à autora do crime, que ainda cumpria pena, e explorava sua notoriedade de forma sensacionalista.
A juíza responsável argumentou que, embora o caso fosse de conhecimento público, a Constituição garante a qualquer pessoa — inclusive condenados — o direito de não ter sua imagem utilizada com fins comerciais sem consentimento. Por esse motivo, determinou a suspensão imediata da venda e da circulação do livro.
Anos depois, uma nova decisão judicial reforçou a proibição. O entendimento foi o mesmo: o conteúdo feria o direito à privacidade de Suzane e violava princípios de dignidade humana. A Justiça entendeu que a publicação não possuía caráter jornalístico ou educativo suficiente para justificar sua circulação enquanto a condenada ainda estava sob custódia do Estado.
O embate jurídico: liberdade de expressão x direito à imagem
O caso reacende um antigo debate entre liberdade de expressão e direito à privacidade. De um lado, o autor e parte da comunidade jornalística defendem que a obra tem valor informativo e contribui para o entendimento do sistema prisional e da cultura de celebrização do crime. De outro, juristas argumentam que a publicação extrapola o limite do interesse público, invadindo a esfera pessoal de alguém que ainda cumpre pena.
A discussão é delicada porque, no Brasil, a publicação de biografias não autorizadas é permitida desde 2015, após decisão do Supremo Tribunal Federal. No entanto, o STF também deixou claro que, em casos excepcionais, pode haver restrições quando se comprovam danos à intimidade ou à imagem do retratado.
No caso de “Tremembé”, a Justiça entendeu que a obra se enquadrava nessa exceção. Por isso, o livro foi classificado como uma violação de direitos individuais e teve sua circulação proibida.
O impacto da decisão no mercado editorial e audiovisual
A suspensão da obra causou grande repercussão no meio editorial. Editoras passaram a redobrar o cuidado com livros de investigação e biografias de criminosos, principalmente quando envolvem pessoas que ainda estão presas. A preocupação não é apenas jurídica, mas também ética: até que ponto é correto lucrar com a história de quem ainda cumpre pena?
Para o setor audiovisual, o caso também serve de alerta. A série “Tremembé” foi concluída com base em elementos de domínio público e em investigações independentes, mas as restrições ao livro levantaram dúvidas sobre até que ponto adaptações baseadas em fatos reais estão seguras juridicamente.
Mesmo assim, o interesse do público pela produção cresceu. O debate sobre censura e direitos autorais acabou se transformando em uma espécie de marketing involuntário para a série, que ganhou destaque nas redes sociais e nos noticiários antes mesmo de sua estreia.
A questão ética das biografias criminais
Biografias de criminosos ou de figuras envolvidas em casos violentos sempre despertam controvérsia. Para alguns especialistas, elas cumprem um papel social importante ao retratar falhas do sistema penal e comportamentos humanos extremos. Para outros, são uma forma de explorar tragédias pessoais e transformar crimes em entretenimento.
No caso de “Tremembé”, o livro foi acusado de se aproveitar da fama do crime para gerar lucro, sem necessariamente contribuir com um debate relevante para a sociedade. Por outro lado, defensores do autor argumentam que obras como essa ajudam a compreender as condições do sistema prisional e os efeitos da notoriedade criminal sobre os condenados.
A discussão também envolve o chamado direito ao esquecimento, segundo o qual pessoas que já cumpriram ou ainda cumprem pena têm o direito de não serem constantemente expostas ou revividas na mídia. Esse direito, porém, ainda é controverso e não tem aplicação uniforme no Brasil.
O que o caso representa para o futuro das biografias no país
O episódio envolvendo o livro de Ullisses Campbell pode abrir precedente para novas ações judiciais e incentivar editoras a revisarem contratos e estratégias. Especialistas apontam que, daqui em diante, obras baseadas em casos criminais precisarão deixar ainda mais clara sua finalidade informativa e documental, evitando tom sensacionalista ou exploratório.
Da mesma forma, plataformas de streaming e produtoras terão de se precaver ao adaptar livros e reportagens, garantindo respaldo jurídico antes de lançar séries inspiradas em histórias reais.
A tendência é que o caso “Tremembé” se torne um divisor de águas no Brasil, estimulando um debate mais profundo sobre ética, liberdade artística e responsabilidade editorial.
Considerações finais
O livro que inspirou a série “Tremembé” não foi apenas um sucesso editorial transformado em audiovisual — tornou-se também um símbolo das tensões entre liberdade de expressão, interesse público e direitos individuais. As duas suspensões judiciais mostram que, mesmo em uma era de acesso irrestrito à informação, ainda existem fronteiras delicadas quando se trata de explorar histórias reais.
A polêmica, longe de encerrar o tema, amplia a reflexão sobre até onde a arte e o jornalismo podem ir ao retratar vidas marcadas por crimes e punições. O caso expõe a necessidade de equilíbrio entre o direito de contar histórias e o dever de respeitar a dignidade humana — uma discussão que continua viva dentro e fora dos tribunais.
