Nova portaria define diretrizes para o uso de tecnologia na segurança pública
O Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou, no fim de junho de 2025, a Portaria nº 961, que estabelece as diretrizes para o uso da inteligência artificial por órgãos de segurança pública em investigações criminais e ações de inteligência. A medida é considerada um avanço normativo no uso de novas tecnologias pelo poder público, mas traz uma série de exigências voltadas à proteção de direitos fundamentais, como privacidade e devido processo legal.
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A quem se aplica a nova regulamentação
A portaria se aplica a diferentes esferas da segurança pública, tanto federais quanto estaduais e municipais, especialmente àquelas que recebem recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). Estão incluídos:
- Polícia Federal (PF)
- Polícia Rodoviária Federal (PRF)
- Força Nacional de Segurança Pública
- Sistema Penitenciário Nacional
- Secretarias estaduais e municipais de segurança pública
- Outras entidades que integram o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP)
Órgãos como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e secretarias vinculadas ao próprio Ministério da Justiça também estão submetidos à norma.
Fundamentos legais e princípios de uso
Necessidade, legalidade e proporcionalidade
A utilização de sistemas de inteligência artificial deverá, obrigatoriamente, observar os princípios da legalidade, necessidade, proporcionalidade e adequação. Isso significa que as tecnologias só poderão ser utilizadas quando forem realmente indispensáveis à investigação ou à atividade de inteligência e sempre com base em normas jurídicas preexistentes.
Proteção da privacidade e restrição de dados
A norma impõe limites rigorosos ao uso de dados pessoais. A obtenção de informações sensíveis, como registros sigilosos ou comunicações privadas, só poderá ocorrer com autorização judicial e dentro do escopo específico de uma investigação formal. Sempre que possível, dados de pessoas que não tenham vínculo com o objeto da investigação devem ser eliminados dos sistemas.
Se forem encontrados indícios de crimes não relacionados ao objetivo inicial da apuração, a norma determina que o material seja encaminhado a autoridade competente, para não extrapolar o escopo legal.
Reconhecimento facial: regras mais rígidas
Proibição e exceções
Um dos pontos mais sensíveis da nova regulamentação diz respeito ao uso do reconhecimento facial em tempo real. A portaria proíbe, como regra geral, o uso desse tipo de tecnologia de forma remota e em ambientes públicos, justamente para evitar abusos e vigilância em massa.
Entretanto, a norma prevê exceções específicas em que o uso pode ser autorizado, desde que obedecidas as condições legais. São elas:
- Busca de pessoas desaparecidas
- Identificação de vítimas de crimes
- Situações de ameaça grave e iminente à vida
- Instrução de inquéritos e processos criminais
- Cumprimento de mandados de prisão
- Recaptura de foragidos
- Flagrantes de crimes com pena superior a dois anos
Acesso controlado e registros obrigatórios
Todos os sistemas com capacidade de reconhecimento ou monitoramento automatizado deverão adotar mecanismos de segurança que restrinjam o acesso a pessoas autorizadas. Isso inclui autenticação por biometria, certificação digital ou autenticação multifator. Além disso, qualquer ação executada nesses sistemas deverá ser registrada, com identificação do agente e justificativa do acesso, assegurando rastreabilidade e responsabilização.
Uso de IA no sistema penitenciário

Monitoramento de sinais e análise de dados
A nova portaria também prevê o uso de tecnologia para combate ao uso ilegal de celulares e outros dispositivos dentro de unidades prisionais. Está autorizado, por exemplo, o uso de sistemas inteligentes para detectar, bloquear e identificar sinais de telecomunicações provenientes de presídios.
O acesso ao conteúdo de aparelhos apreendidos também poderá ser feito, desde que haja decisão judicial autorizando a análise dos dados e que essa medida esteja relacionada a uma investigação ou instrução penal em curso.
Transparência e controle institucional
Fiscalização e auditoria
Para garantir o uso ético e legal da inteligência artificial, os órgãos que utilizarem essas tecnologias deverão elaborar planos de resposta a incidentes, realizar auditorias periódicas e implantar mecanismos de governança e segurança da informação.
A norma também proíbe expressamente que investigações sejam conduzidas de forma anônima. Todo processo investigativo deverá ter responsável identificado, com registro formal e observância do devido processo legal.
Distinção entre investigação e inteligência
Um dos pontos destacados pelo Ministério da Justiça é a necessidade de separar claramente as atividades de investigação criminal das ações de inteligência pública. Enquanto a investigação depende de autorização judicial e deve respeitar estritamente a legalidade, as ações de inteligência não podem invadir a esfera privada protegida constitucionalmente.
Declarações do ministro da Justiça
O ministro Ricardo Lewandowski, ao comentar a publicação da portaria, ressaltou que o governo buscou equilibrar inovação tecnológica com o respeito aos direitos constitucionais dos cidadãos. Ele afirmou que a medida foi elaborada com “extremo cuidado”, visando garantir que a IA seja uma aliada da segurança pública, mas sem comprometer garantias fundamentais.
Segundo o ministro, o Brasil entra agora em uma nova fase no uso da inteligência artificial no setor público, com regras claras, critérios técnicos e foco em transparência.
Desafios e expectativas para o futuro
Equilíbrio entre inovação e direitos civis
Embora a portaria represente um avanço importante, especialistas alertam que a eficácia da norma dependerá de sua implementação prática. Há desafios técnicos, como a capacitação de agentes públicos, a atualização das infraestruturas digitais e a prevenção de falhas ou abusos no uso da IA.
Organizações da sociedade civil também apontam a necessidade de vigilância contínua, sobretudo em relação ao uso de tecnologias de vigilância em larga escala. O receio é que, mesmo com regras claras, falhas operacionais possam gerar violações de direitos.
Pioneirismo brasileiro
Apesar dos desafios, a iniciativa é vista como pioneira no cenário latino-americano. Enquanto países desenvolvidos ainda discutem marcos regulatórios para uso de IA em segurança pública, o Brasil se antecipa com diretrizes específicas que podem servir de modelo internacional, desde que bem aplicadas.
Considerações finais
A Portaria nº 961 de 2025 representa um marco importante na modernização da segurança pública brasileira. Ao regulamentar o uso da inteligência artificial em investigações e atividades de inteligência, o governo federal avança em direção a uma atuação mais eficiente e tecnológica. No entanto, o sucesso dessa medida dependerá diretamente do cumprimento rigoroso das regras estabelecidas, da capacitação dos profissionais envolvidos e da vigilância permanente da sociedade sobre o respeito aos direitos fundamentais.













