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Tecnologia do além: inteligência artificial simula conversas com pessoas que já faleceram

Um novo capítulo do luto na era digital

O avanço da inteligência artificial está transformando não apenas a forma como vivemos, mas também como nos despedimos. Em um fenômeno recente e controverso, empresas estão desenvolvendo tecnologias que permitem interagir com versões digitais de pessoas que já morreram. Esses sistemas, alimentados por informações pessoais e trechos da fala original dos falecidos, simulam diálogos como se a pessoa ainda estivesse viva — em uma tentativa de aliviar a dor da perda.

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A evolução dos griefbots: o que são e como funcionam

Interfaces que imitam pessoas reais

Os chamados “griefbots” (bots do luto) são construídos com base em materiais que a própria pessoa deixou em vida: textos, áudios, vídeos, e-mails e postagens nas redes sociais. A IA aprende com esse acervo e tenta reproduzir não só o conteúdo, mas o jeito de falar, as preferências e o estilo emocional daquele indivíduo.

Voz, imagem e personalidade recriadas digitalmente

Algumas plataformas, como a startup americana Eternos, permitem que a pessoa em vida grave mensagens e até responda a perguntas sobre momentos marcantes, valores pessoais e histórias familiares. Após a morte, familiares podem interagir com esse “legado digital” por meio de texto, voz sintetizada e até imagens geradas por IA. O resultado é uma espécie de clone virtual com aparência e comportamento semelhantes ao do falecido.

Principais empresas que atuam no setor

Eternos: legado programado antes da partida

A Eternos permite que indivíduos em fase terminal criem um banco de memórias interativo para que entes queridos possam acessá-lo depois. O sistema grava depoimentos e monta uma personalidade conversacional a partir de vídeos, áudios e textos.

HereAfter AI e StoryFile: biografia conversacional

Essas plataformas oferecem serviços que transformam entrevistas em vídeos interativos, em que o falecido responde perguntas sobre sua vida, como se estivesse presente. O diferencial está na experiência audiovisual imersiva, com IA responsável por moldar as respostas e interações com base no histórico da pessoa.

Project December: simulações por texto

Já a ferramenta conhecida como Project December funciona por meio de mensagens escritas. Por um valor relativamente acessível, qualquer usuário pode simular uma conversa com um ente querido falecido, bastando fornecer dados como nome, idade, interesses e exemplos de fala.

Potenciais benefícios emocionais

Alívio temporário para a dor da perda

Para muitos, essa tecnologia oferece uma forma de aliviar a saudade, mesmo que de maneira simbólica. Algumas pessoas relatam que conversar com esses avatares ajudou no processo de aceitação, permitindo uma despedida mais suave. Em alguns casos, serviu como apoio terapêutico, funcionando como uma extensão do diário emocional.

Preservação de memórias e legado

Além do consolo imediato, a IA pode funcionar como repositório afetivo. Pais gravam mensagens para filhos, idosos deixam histórias para os netos, e pessoas com doenças terminais registram suas experiências para que não se percam com o tempo.

Mas nem tudo são flores: os dilemas éticos em torno da tecnologia

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Imagem – Bestofweb/Freepik

O risco de prolongar o luto

Especialistas em saúde mental alertam que o uso frequente de griefbots pode dificultar o encerramento do processo de luto. Em vez de permitir que a pessoa siga em frente, o contato constante com uma simulação pode criar dependência emocional e impedir a aceitação da ausência definitiva.

O que é real e o que é fabricado?

Outra questão relevante é a autenticidade. Mesmo que a IA pareça convincente, ela não é o falecido — mas sim um modelo matemático. O risco é de que os usuários confundam o simulacro com a realidade, atribuindo sentimentos ou intenções que nunca existiram de fato.

Consentimento e privacidade pós-morte

Quem autoriza a criação de um avatar digital? E se os familiares quiserem usar a voz e imagem de alguém que nunca deixou esse tipo de autorização em vida? A ausência de legislação específica sobre uso de dados de falecidos abre brechas para abusos. Sem regras claras, essa prática pode ser explorada comercialmente de forma pouco ética.

O que diz a psicologia sobre os griefbots?

Conforto momentâneo ou armadilha emocional?

Para a psicóloga Adriana Lins, especialista em luto e memória afetiva, a tecnologia pode ter papel positivo se usada com equilíbrio. “O contato digital pode ser simbólico, como manter uma foto em casa. Mas quando passa a substituir relações reais ou atrasa o ciclo do luto, vira um problema”, afirma.

Ela também alerta para os efeitos em crianças e adolescentes, que ainda estão desenvolvendo a noção de permanência da morte e podem ter mais dificuldade de lidar com a ausência se incentivados a manter conversas com avatares.

Repercussões sociais e culturais

Luto cada vez mais digitalizado

Vivemos em uma era em que as redes sociais já participam do processo de luto — com perfis que viram memoriais e fotos de homenagem. Os griefbots são apenas a próxima etapa dessa digitalização do adeus.

Herança emocional e direitos digitais

Em alguns países, há discussão sobre o direito à “herança digital”. Assim como bens físicos, arquivos, imagens e perfis online podem ser transmitidos por testamento. Com os griefbots, esse conceito se estende: é possível deixar instruções sobre a criação do próprio avatar digital, como parte do legado deixado para filhos, cônjuges ou amigos.

Caminhos possíveis: regulamentação e limites

Transparência obrigatória

Pesquisadores e desenvolvedores defendem que os griefbots devem deixar claro que são simulações, exibindo mensagens de aviso visíveis ao usuário. Isso evitaria confusões emocionais e daria maior clareza ao processo.

Controle sobre uso e exclusão

Outro ponto central é garantir que os familiares tenham controle sobre o uso, armazenamento e exclusão desses dados, caso decidam interromper o serviço. Também é sugerida a criação de “botões de emergência” que permitam desativar o avatar a qualquer momento.

Educação digital e protocolos de saúde mental

Especialistas sugerem que, ao oferecer esse tipo de ferramenta, as empresas também ofereçam orientação psicológica e recomendações de uso consciente, para evitar que a tecnologia se torne um risco à saúde emocional dos usuários.

O que esperar do futuro?

Com o avanço das tecnologias de linguagem natural, modelagem de voz e geração de imagens realistas, os griefbots devem se tornar cada vez mais parecidos com os seres humanos. Avatares em 3D com expressões faciais personalizadas e capacidade de lembrar de conversas anteriores já estão sendo testados.

No futuro, é possível que funerárias passem a oferecer esse tipo de serviço como parte do pacote — junto com urna, cerimônia e cremação. A tendência aponta para a personalização extrema do luto, mas exigirá um debate coletivo sobre até onde devemos (ou podemos) ir.

Considerações finais: entre o consolo e a reflexão

A tecnologia de simular conversas com pessoas que já faleceram pode parecer reconfortante para uns e perturbadora para outros. Em ambos os casos, trata-se de um avanço irreversível, que nos obriga a repensar a relação entre vida, memória, morte e eternidade.

Se bem utilizada, a inteligência artificial pode ser uma ponte entre gerações, preservando histórias e afetos. Mas sem responsabilidade, corre o risco de se tornar uma distorção perigosa da realidade. O desafio está em encontrar o equilíbrio entre o humano e o digital — inclusive quando já não estamos mais aqui.


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