O dia 27 de janeiro de 2013 culminou com a morte de 242 pessoas em um único local. A data fatídica foi marcada por um acontecimento que gerou comoção em todo o país: o incêndio na Boate Kiss, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Em comum entre as vítimas, todas estavam no lugar errado na hora errada. Mas como poderiam saber se nem sempre o destino dá pistas de como planeja agir?
No dia seguinte ao da tragédia, os sócios da boate, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, e os músicos Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos, da banda Gurizada Fandangueira, tiveram sua prisão decretada.
Mas, de lá para cá, alguma justiça foi feita? Algum dos indiciados da tragédia segue preso? A resposta para estas perguntas reflete bem como a Justiça (não) funciona no Brasil: os pais dos mortos é quem estão sendo processados. Não, você não leu errado. E faço questão de repetir: os pais dos mortos estão sendo processados.
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Foto: Tribuna do Norte / Reprodução
Pense por um instante: seu filho, o que há de mais precioso para você, sai para se divertir em uma discoteca com os amigos e, simplesmente, não volta mais para casa. Pior do que a incerteza de não saber o que está acontecendo, é descobrir a verdade cruel.
É uma injustiça, uma dor insuportável, uma cicatriz que pais e mães carregarão por toda a vida. Mas não basta. É pouco pelo o que parece. Desgraça pouca é bobagem. Então, estes pobres familiares estão sendo processados porque reclamam que, anos após o incêndio, ninguém foi responsabilizado pela tragédia.
Mais uma vez: você não leu errado. Seu crime é pedir por justiça.
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Foto: Reprodução
À revista ISTOÉ, Paulo Carvalho – pai de Rafael, 32, uma das vítimas fatais -, revelou que, mesmo diante de um cenário de tristeza e impotência, sua voz não será silenciada: “Por meu filho, que não se acovardou naqueles momentos terríveis, nunca calarão a minha boca”.
Paulo foi processado pelos promotores Joel Dutra e Maurício Trevisan por calúnia e difamação. Como pai de um rapaz que morreu, Carvalho encara a “Justiça”, enquanto alega que aqueles que sabiam que as condições da boate eram precárias estão soltos. “É uma indecência”, diz o pai, que enquanto aguarda uma sentença.
Assim como Paulo, outros estão diante de processos. Sérgio da Silva e Flávio José Silva, presidente e vice-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes, enfrentam o mesmo problema de Paulo. Desta vez, só que muda é o promotor – Ricardo Lozza.
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Sérgio da Silva e cartaz com a foto das vítimas – Crédito: Charles Guerra – via ISTOÉ
Os dois estão sendo processados por calúnia e por cartazes nos quais a foto do promotor está acompanhada da seguinte frase: “o Ministério Público e seus promotores também sabiam que a boate estava funcionando de forma irregular”. É bem verdade que possa ter havido um exagero, mas o contexto de toda a história não conta? ‘Justiça’ ou vingança? Orgulho, talvez?
“O promotor Lozza tinha conhecimento de que a boate Kiss funcionava irregularmente desde 2009, mas nunca tomou nenhuma providência”, contou Flávio também à ISTOÉ. “Eu me sinto marginalizado, sou execrado por uma instituição que deveria zelar pelo cidadão”, completou. E não dá para discordar disso.
O Ministério Público ofereceu um acordo aos pais: o pagamento de um salário mínimo, doações de cestas básicas a instituições de caridade e retratação público. Além disso, também a obrigatoriedade dos pais se apresentarem à Justiça a cada três meses. E tudo isso durante o período de dois anos.
Parece brincadeira, não é mesmo?
“Para mim, que carrego a dor de ter perdido um filho, não fará diferença ser preso ou não por denunciar o MP”, comentou Sérgio à revista. No cenário atual, as condenações de Flávio e Sérgio são mais prováveis do que improváveis. Os dois estão para receber sentença condenatória.
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O promotor Ricardo Lozza (à dir.) – Foto: Reprodução
E ah, só para deixar registrado, as “novas vítimas” não param por aí. Por calúnia, difamação e falsidade ideológica, Irá Marta Beuren, mãe que perdeu o filho na Kiss, foi processada pelo promotor – já aposentado – Marcos Adeye y Castro, e seu filho, Ricardo Luís Schultz. Marta seguiu adiante com uma denúncia após Ricardo se tornar o advogado da boate logo após a aposentadoria do pai, que ainda atuava como promotor quando a Kiss já era alvo de investigações antes mesmo da tragédia.
Seguiremos acompanhando os casos. E… assim o Brasil caminha.
Será que os mortos também serão processados? Vale ressaltar que eles já foram chamados de “culpados por estarem ingerindo bebida alcoólica”.
Triste, não?


Foto: Tribuna do Norte / Reprodução
Foto: Reprodução
Sérgio da Silva e cartaz com a foto das vítimas – Crédito: Charles Guerra – via ISTOÉ
O promotor Ricardo Lozza (à dir.) – Foto: Reprodução










