Funk nas cordas: prisão de MCs reacende debate sobre criminalização da cultura periférica
Casos de MC Poze do Rodo e Oruam levantam questionamentos sobre repressão cultural e seletividade penal
A prisão do cantor MC Poze do Rodo e a polêmica em torno do rapper Oruam voltaram a colocar o funk no centro de um velho debate no Brasil: até onde vai o limite entre a liberdade artística e a suposta apologia ao crime? Enquanto defensores da cultura periférica acusam o Estado de perseguir artistas negros e favelados, parte da sociedade e do poder público entende que há necessidade de conter discursos que possam, segundo eles, incentivar a violência.
A discussão sobre a criminalização do funk não é nova, mas ganha novos contornos com o uso de redes sociais, pressões legislativas e um cenário social cada vez mais polarizado.
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MC Poze do Rodo e a prisão polêmica
No final de maio de 2025, o cantor MC Poze do Rodo foi preso pela Polícia Civil do Rio de Janeiro sob a acusação de fazer apologia ao tráfico de drogas e manter ligações com organizações criminosas. A detenção gerou grande repercussão nacional, não só pelo nome envolvido, mas também pelas circunstâncias da abordagem, considerada humilhante por seus apoiadores.
Vestindo apenas bermuda e sendo algemado em frente a populares, o artista foi levado à delegacia e teve sua imagem amplamente divulgada. Dias depois, a Justiça determinou sua soltura por meio de habeas corpus, destacando que a prisão preventiva carecia de fundamentos sólidos.
Oruam e a proposta legislativa que mira funkeiros
Enquanto isso, em São Paulo, uma proposta de lei apresentada por uma vereadora visa proibir apresentações públicas de artistas cujas músicas contenham conteúdo que possa ser interpretado como apologia ao crime. A proposta ficou conhecida informalmente como “Lei Anti-Oruam”, em referência ao rapper carioca, cujo repertório costuma abordar a realidade violenta das comunidades em que cresceu.
A proposta, que ainda está em fase de discussão, gerou intenso debate entre artistas, juristas e representantes da sociedade civil.
A história da perseguição ao funk no Brasil
Do preconceito ao controle estatal
Desde a sua origem nos anos 1980 e 1990, o funk carioca foi alvo de repressão institucional. Inicialmente marginalizado por sua estética e linguagem direta, o gênero rapidamente passou a ser associado ao tráfico, à criminalidade e à sexualização excessiva. Essa associação, muitas vezes alimentada por setores da mídia, ajudou a consolidar o preconceito contra os MCs e seus públicos.
Os chamados “bailes funk”, frequentes nas favelas e periferias urbanas, passaram a ser vistos pelas autoridades como pontos de desordem pública. Muitos foram reprimidos, proibidos ou encerrados à força pelas polícias estaduais, com justificativas que variavam de “falta de alvará” a “risco à segurança pública”.
Racismo estrutural e seletividade
Para estudiosos e ativistas, a criminalização do funk não pode ser separada do racismo estrutural. A repressão, dizem, atinge principalmente jovens negros de origem humilde, cujas vozes e narrativas incomodam o status quo.
Enquanto outros gêneros musicais — como rock ou sertanejo — também retratam temas como violência, drogas e vida marginal, raramente sofrem o mesmo tipo de repressão ou julgamento moral. A seletividade, afirmam, revela mais sobre o preconceito social do que sobre o conteúdo das letras em si.
Apologia ou denúncia? A disputa em torno das letras

O que diz a lei
O Código Penal brasileiro prevê punições para quem fizer apologia ao crime ou incitar publicamente práticas criminosas. No entanto, há um ponto nebuloso na interpretação: até que ponto uma canção, ainda que fale de tráfico ou armas, está de fato incentivando o crime, ou apenas retratando uma realidade vivida por milhões?
Essa é a principal linha de defesa dos artistas: suas músicas não seriam uma glorificação da criminalidade, mas um reflexo brutal do cotidiano de muitos jovens das periferias.
Liberdade de expressão como escudo
Advogados e defensores dos MCs argumentam que a arte, mesmo quando incômoda, está protegida pela Constituição. O artigo 5º garante a liberdade de expressão e proíbe qualquer forma de censura prévia. Para eles, qualquer tentativa de punir artistas por suas letras fere diretamente esse princípio.
O peso da estética e do ambiente social
Outro fator relevante é o ambiente cultural onde o funk se desenvolve. Em comunidades marcadas pela ausência do Estado, violência policial e falta de perspectivas, a música torna-se uma forma de denúncia, sobrevivência e ascensão social. Criminalizar esse processo seria, segundo os críticos, tentar apagar uma vivência social complexa.
A reação dos artistas e do público
Mobilização nas redes sociais
Após a prisão de MC Poze, milhares de fãs se manifestaram em sua defesa, com campanhas nas redes sociais e protestos em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. A hashtag #JustiçaPorPoze ficou entre os assuntos mais comentados por dias.
Diversos artistas também se pronunciaram, entre eles Ludmilla, Djonga, MC Carol e Emicida, todos destacando a seletividade da repressão e o racismo implícito na forma como a cultura da favela é tratada.
Clipes e músicas de protesto
Oruam, por sua vez, lançou um clipe em resposta à proposta de lei que leva seu nome. Com versos fortes e imagens que retratam a resistência da favela, a música rapidamente ganhou milhões de visualizações e se tornou símbolo do movimento contra a censura ao funk.
Caminhos para uma nova abordagem
Educação e diálogo no lugar da repressão
Para especialistas em segurança pública e cultura, a repressão musical é contraproducente. Em vez de tentar calar as vozes das favelas, o poder público deveria investir em diálogo, políticas sociais e educação. Incentivar o protagonismo juvenil, fortalecer o acesso à cultura e combater a desigualdade social são, segundo eles, formas mais eficazes de lidar com a violência do que prender artistas.
Regulamentação mais clara e equilibrada
Juristas defendem que a legislação brasileira sobre apologia ao crime precisa ser revista com critérios mais objetivos, evitando interpretações subjetivas e usos políticos. Além disso, pedem que haja distinção entre denúncia social e incitação ao crime — algo que, no campo da arte, nem sempre é fácil de traçar.
Considerações finais: arte como espaço de disputa
A criminalização do funk, como mostram os casos de MC Poze do Rodo e Oruam, não é apenas uma questão de segurança pública ou de letras de músicas. Trata-se, sobretudo, de uma disputa pelo direito de existir, narrar e resistir.
Para milhões de jovens da periferia, o funk é mais do que entretenimento: é identidade, território, denúncia e possibilidade de transformação. Calar essas vozes pode parecer conveniente para alguns, mas representa um grave retrocesso democrático e cultural para o país como um todo.


