Nos últimos anos, a cidade espanhola de Málaga se consolidou como um dos principais centros de inovação e tecnologia da Europa. Com investimentos bilionários, aumento expressivo de empresas do setor digital e a chegada de profissionais altamente qualificados, o município se tornou um exemplo de progresso econômico. Mas esse crescimento acelerado gerou um efeito colateral grave: a crise habitacional. Hoje, o custo da moradia subiu tanto que até engenheiros, desenvolvedores e pesquisadores estão deixando a cidade por não conseguirem pagar aluguel ou comprar imóveis.
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O crescimento de Málaga como polo tecnológico
A consolidação como referência em inovação
Málaga ganhou destaque internacional ao atrair gigantes da tecnologia e inovação para seu território, incluindo empresas como Google, Oracle e outras startups. O Parque Tecnológico da Andaluzia, conhecido como Málaga TechPark, é um símbolo desse avanço. Em 2024, ele empregava quase 28 mil pessoas e gerava uma receita superior a 4 bilhões de euros. O sucesso econômico, no entanto, criou uma demanda habitacional que o município não foi capaz de acompanhar.
Demanda crescente e pouca oferta
A valorização da cidade atraiu novos moradores, investidores estrangeiros e turistas interessados em fixar residência. A consequência foi a explosão dos preços dos imóveis — tanto para aluguel quanto para compra. Desde 2017, o valor médio do metro quadrado quase dobrou, chegando a ultrapassar os 3.300 euros/m² em 2025.
Profissionais qualificados sendo empurrados para fora

Engenheiros sem acesso à própria cidade
O que deveria ser um cenário de oportunidades para profissionais de tecnologia e ciência acabou se tornando um desafio. Muitos engenheiros que atuam nas empresas da cidade relatam que, mesmo com salários acima da média nacional, não conseguem mais encontrar imóveis com valores compatíveis com sua renda. O aluguel de um apartamento simples pode ultrapassar 1.200 euros mensais — uma quantia incompatível com o orçamento de muitos trabalhadores, mesmo os mais experientes.
O paradoxo da exclusão
Felipe Romera, diretor do Málaga TechPark, resumiu o dilema vivido pela cidade: “Estamos produzindo progresso, mas afastando as pessoas que o constroem”. O que deveria ser um caso de sucesso urbano está se tornando um exemplo de desequilíbrio estrutural. Profissionais essenciais para a economia local são obrigados a buscar moradia em cidades vizinhas, enfrentando longas horas de deslocamento diário e impacto direto na qualidade de vida.
Principais causas da escalada nos preços
Crescimento do turismo e uso de imóveis para aluguel de curto prazo
Um dos fatores mais críticos para o agravamento da crise é o crescimento do turismo. Málaga é uma cidade litorânea, com clima ameno e grande apelo histórico-cultural. Isso a tornou um destino preferido para visitantes, especialmente europeus. Com a expansão de plataformas como Airbnb, muitos imóveis foram convertidos em apartamentos de temporada, reduzindo drasticamente a oferta para os moradores fixos.
Atualmente, estima-se que existam mais de 12 mil propriedades cadastradas como alojamento turístico, o que representa uma fatia significativa do mercado imobiliário. Esse fenômeno pressiona os preços para cima e reduz a disponibilidade de moradias convencionais.
Especulação imobiliária e investimento estrangeiro
Málaga também virou alvo de especuladores e fundos de investimento que enxergam na cidade uma oportunidade de retorno rápido e valorização. Compradores internacionais adquiriram imóveis em larga escala, especialmente em áreas centrais, e os transformaram em ativos financeiros. Isso empurra os preços ainda mais alto, tornando-os incompatíveis com a renda média dos trabalhadores locais.
Construção abaixo da demanda
Apesar do aumento na procura, a construção de novas moradias não acompanhou o ritmo. O número de lançamentos imobiliários caiu drasticamente ao longo da última década, e o estoque de imóveis novos disponíveis na província de Málaga foi reduzido em quase 75%. Isso criou um descompasso estrutural entre oferta e demanda, favorecendo a valorização desenfreada.
Consequências sociais e urbanas
Gentrificação e êxodo residencial
Os efeitos da crise habitacional se traduzem em um processo intenso de gentrificação. Bairros antes acessíveis estão sendo ocupados por estrangeiros de alto poder aquisitivo ou transformados em zonas turísticas, enquanto famílias tradicionais e trabalhadores de classe média são obrigados a migrar para a periferia ou cidades vizinhas. Isso altera a dinâmica social, gera desigualdade e cria bolsões de exclusão habitacional.
Colapso na mobilidade urbana
Com a dispersão dos trabalhadores para áreas mais distantes, os sistemas de transporte estão sendo sobrecarregados. A malha ferroviária e as rodovias que ligam Málaga a outras cidades não foram projetadas para esse volume diário de deslocamento. Isso resulta em trânsito, aumento da poluição e perda de produtividade.
Impactos psicológicos e familiares
Não é apenas uma questão econômica: a impossibilidade de morar próximo ao trabalho ou à escola dos filhos afeta diretamente o bem-estar mental e emocional dos moradores. A sensação de “não pertencimento” à cidade em que trabalham, associada ao estresse dos deslocamentos, tem impactos que vão muito além da moradia.
Medidas em discussão para conter a crise
Suspensão de novas licenças para turismo residencial
Como resposta emergencial, a prefeitura de Málaga adotou uma moratória para a concessão de novas licenças de aluguel de temporada. A medida, que deve durar ao menos três anos, visa conter a expansão descontrolada do turismo residencial e preservar imóveis para uso familiar. No entanto, especialistas alertam que essa ação, isoladamente, pode não ser suficiente.
Incentivos à habitação acessível
Diversos urbanistas e economistas propõem a criação de incentivos para a construção de moradias populares e projetos de aluguel controlado, com subsídios públicos e parcerias com o setor privado. Também é defendida a reserva obrigatória de uma porcentagem de unidades acessíveis em novos empreendimentos imobiliários.
Expansão e modernização do transporte público
Outro ponto crucial é a ampliação do transporte metropolitano. Com trens e ônibus modernos, seguros e frequentes, seria possível tornar a moradia nas cidades vizinhas mais viável e menos penosa. A descentralização do trabalho — com estímulo ao home office parcial — também é vista como alternativa para aliviar a pressão sobre o centro urbano.
Um futuro incerto para uma cidade em ascensão
Málaga vive hoje o paradoxo do progresso. O que a tornou referência em desenvolvimento e inovação está, ao mesmo tempo, se tornando sua maior ameaça. A crise de habitação revela que o crescimento econômico, quando não é acompanhado de planejamento urbano e políticas públicas inclusivas, pode gerar exclusão em vez de prosperidade coletiva.
Se nada for feito, a cidade corre o risco de perder talentos, travar sua economia e se transformar em um destino turístico estéril, sem vida comunitária e diversidade social. A questão não é apenas onde as pessoas vão morar — é se elas ainda poderão chamar Málaga de lar.
