Fungos e inteligência artificial se unem em obra que desafia o domínio humano sobre a natureza
Uma nova forma de arte que une biologia e tecnologia
O encontro entre arte, ciência e tecnologia tem gerado obras que desafiam fronteiras e percepções sobre o que é “vivo” e o que é “artificial”. Entre essas experiências, o projeto “Ser hifanizado” — desenvolvido pelo coletivo Cesar & Lois, formado pelo professor Cesar Baio, da Unicamp, e pela artista norte-americana Lucy HG Solomon — se destaca por colocar fungos reais e inteligência artificial (IA) em diálogo para provocar uma reflexão sobre o controle humano da natureza.
A instalação foi finalista do Lumen Prize 2025, um dos principais prêmios internacionais de arte e tecnologia. Nela, organismos vivos e sistemas digitais coexistem em um ambiente sensível, que reage à presença do público e aos estímulos do próprio ecossistema criado.
Mais do que uma experiência estética, a obra funciona como um experimento filosófico e ecológico, questionando o papel da humanidade nas redes que sustentam a vida no planeta.
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A origem da parceria
O grupo Cesar & Lois nasceu em 2017, da união entre um artista-pesquisador brasileiro e uma criadora norte-americana que compartilham o interesse por bioarte, ecologia e inteligência artificial. Desde então, os dois têm trabalhado em projetos que fundem o pensamento científico com o sensível, explorando as interconexões entre espécies e sistemas.
A dupla já havia conquistado o Lumen Prize 2019 com o projeto Culturas Degenerativas, em que fungos e algoritmos interagiam com textos impressos, destruindo e reinterpretando informações humanas. Com “Ser hifanizado”, eles expandem o conceito — agora, o fungo não apenas reage, mas se torna parte de um ecossistema interativo com lógica própria.
A ideia por trás de “Ser hifanizado”
O significado do nome
O termo “hifanizado” vem de hifa, estrutura microscópica dos fungos responsável por sua nutrição e comunicação com o ambiente. As hifas formam extensas redes subterrâneas, conectando plantas e outros organismos — um verdadeiro “internet natural” do solo.
A obra propõe que o ser humano também possa se “hifanizar”, ou seja, reconectar-se com a natureza através da empatia e da tecnologia. É um convite a abandonar a lógica de dominação e a adotar uma postura de cooperação com o mundo vivo.
Um ecossistema entre o digital e o orgânico
A instalação combina fungos vivos cultivados em substratos, sensores ambientais, umidade controlada e sistemas de IA treinados para responder a estímulos biológicos. Os dados captados dos fungos — como variações elétricas e reações químicas — alimentam algoritmos que transformam essas informações em padrões de luz, som e movimento.
O visitante, ao se aproximar, altera a temperatura e a umidade do ambiente, interferindo no comportamento da obra. Assim, o público participa de um ciclo em que humanos, fungos e máquinas influenciam uns aos outros, formando um organismo coletivo.
Quando a arte vira manifesto ecológico

A inversão da lógica de controle
Em um mundo dominado por tecnologias voltadas ao controle — seja da natureza, da informação ou das próprias emoções —, o projeto subverte esse paradigma. Aqui, a tecnologia não comanda, mas escuta.
A IA, em vez de simular a racionalidade humana, é treinada para agir conforme os padrões dos fungos, interpretando seus impulsos elétricos e criando uma lógica “não humana” de resposta. Essa inversão propõe uma nova forma de coexistência: tecnologia como extensão da vida, não como ferramenta de poder.
O diálogo entre arte e filosofia
A obra se insere em debates contemporâneos sobre o Antropoceno — a era em que as ações humanas moldam o planeta. “Ser hifanizado” convida o espectador a repensar essa centralidade, adotando uma visão mais biocêntrica e relacional, onde todos os seres, humanos ou não, compartilham a mesma teia existencial.
Ao permitir que fungos influenciem a tecnologia, a obra sugere uma inversão simbólica: o “controle da natureza” cede espaço ao “diálogo com a natureza”.
Ciência, arte e tecnologia de mãos dadas
A colaboração interdisciplinar
O projeto foi desenvolvido em parceria com o Treseder Lab, da Universidade da Califórnia, Irvine, especializado no estudo de fungos e mudanças climáticas. O laboratório forneceu dados experimentais usados para calibrar o comportamento da IA e os sensores ambientais.
Na Unicamp, o projeto envolveu pesquisadores de diferentes áreas, incluindo o Instituto de Biologia e o Instituto de Artes. Essa integração reflete a filosofia central da obra: nenhum conhecimento é isolado, tudo se interliga.
Exposições e reconhecimento internacional
“Ser hifanizado” foi exibido inicialmente na Universidade da Califórnia e será apresentado no Brasil, na Galeria de Arte do Instituto de Artes da Unicamp (GAIA). O projeto recebeu atenção internacional por integrar vida, arte e algoritmo em uma experiência estética e científica ao mesmo tempo.
Sua indicação ao Lumen Prize 2025 consolida o reconhecimento global da dupla como uma das mais inovadoras no campo da arte tecnológica contemporânea.
O que a obra nos ensina sobre o futuro
Um novo modo de ver a tecnologia
Em vez de enxergar a tecnologia como inimiga da natureza, a obra propõe uma convivência simbiótica. Assim como as hifas conectam fungos e árvores, a IA pode se tornar uma extensão das redes biológicas, ampliando a capacidade humana de entender e respeitar os ecossistemas.
Esse tipo de arte aponta para um futuro em que a criação tecnológica será mais ética, sensível e ecológica, inspirando novos modos de pensar o papel das máquinas no mundo vivo.
O papel educativo da arte ecológica
A obra também tem função pedagógica. Ao observar como o ambiente reage à presença humana, o público percebe a interdependência entre os sistemas naturais e como pequenas ações — como o calor do corpo ou a umidade do ar — impactam um ecossistema.
Essa experiência sensorial ajuda a tornar palpável uma verdade muitas vezes esquecida: a vida é uma rede em constante diálogo, e não um conjunto de partes isoladas.
Desafios éticos e técnicos da bioarte
Trabalhar com organismos vivos levanta dilemas éticos e práticos. É preciso manter condições adequadas para o bem-estar dos fungos, respeitar normas de biossegurança e lidar com a imprevisibilidade da natureza.
Além disso, há o desafio filosófico: até que ponto a IA pode traduzir a “linguagem” de um fungo sem reduzi-la à lógica humana? Essa é uma das grandes provocações da obra — mostrar que talvez nunca possamos compreender totalmente a alteridade da vida, e que justamente aí reside sua beleza.
A arte como espelho da interdependência
A força de “Ser hifanizado” está em seu simbolismo. Ao unir o artificial e o orgânico, o projeto nos lembra que a fronteira entre humano e natureza é uma construção cultural, não uma separação real.
Fungos, IA e seres humanos, conectados por sensores e redes invisíveis, tornam-se parte de um mesmo organismo. É uma metáfora poderosa para um mundo que precisa de cooperação e empatia para enfrentar as crises ambientais e sociais.
Considerações finais
A instalação “Ser hifanizado” representa um marco na arte contemporânea brasileira ao mostrar que tecnologia e natureza não são opostos, mas extensões uma da outra. Ao dar voz a organismos invisíveis e permitir que eles comandem o diálogo, o projeto sugere uma nova forma de consciência ecológica e estética.
Mais do que um experimento artístico, é um chamado para repensar a relação da humanidade com o planeta. Em um tempo de colapsos ambientais e avanço tecnológico acelerado, a arte de Cesar & Lois mostra que talvez o futuro dependa justamente de aprender a escutar — inclusive os fungos.


