Um dos eventos mais marcantes da conservação ambiental na América do Sul aconteceu em 2025. Após 39 anos de ausência, a lontra-gigante (Pteronura brasiliensis) voltou a habitar os rios e lagoas da Argentina, mais especificamente o Parque Iberá, em Corrientes.
A espécie, considerada extinta no país desde 1986, reaparece como símbolo da recuperação dos ecossistemas e da capacidade de reverter extinções locais por meio de ciência, cooperação e persistência. A volta do maior mustelídeo aquático do mundo redefine o debate sobre conservação e reacende a esperança de restaurar espécies perdidas.
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Extinção local em 1986
Durante grande parte do século XX, a lontra-gigante era encontrada em vários rios e áreas alagadas da Argentina, especialmente nas bacias do Paraná e Paraguai. Porém, o avanço da caça, o desmatamento e a poluição dos cursos d’água reduziram rapidamente suas populações.
Em 1986, o último registro confirmado de uma lontra-gigante em território argentino marcou o fim de uma era. Desde então, o animal passou a ser considerado extinto localmente, restando apenas algumas populações na Amazônia brasileira, no Peru e no norte da Bolívia.
O papel ecológico da lontra-gigante
Com até 1,8 metro de comprimento e peso que pode chegar a 30 quilos, a lontra-gigante é um predador essencial dos ecossistemas aquáticos. Sua dieta composta principalmente por peixes mantém o equilíbrio entre espécies e impede a proliferação de predadores intermediários.
Sua ausência alterou cadeias alimentares, afetando diretamente a dinâmica de lagos e rios, o que agravou o desequilíbrio ecológico da região.
A ideia de reintrodução e o nascimento do projeto Iberá

Planejamento de longo prazo
A iniciativa para trazer a lontra-gigante de volta começou com a ONG Rewilding Argentina, braço do projeto criado por Douglas e Kristine Tompkins — fundadores da North Face e da Patagonia. A organização já havia conduzido a reintrodução de outras espécies, como a arara-vermelha e o tamanduá-bandeira.
O plano para a lontra foi ambicioso e exigiu quase duas décadas de estudos ambientais, parcerias internacionais e negociações com zoológicos europeus que abrigavam indivíduos saudáveis da espécie.
A escolha do Parque Iberá
O Parque Iberá, localizado na província de Corrientes, foi escolhido por reunir todas as condições ideais: abundância de água limpa, vegetação nativa e ausência de grandes predadores. A área é uma das maiores reservas naturais do continente, com mais de 750 mil hectares de banhados e lagoas, e já abriga outros animais reintroduzidos com sucesso.
O ecossistema foi preparado com ações de restauração vegetal e controle da pesca predatória para que o habitat estivesse equilibrado no momento da soltura das lontras.
O retorno histórico da espécie
Os primeiros exemplares
Em 2025, quatro lontras foram reintroduzidas oficialmente. O casal Nima e Coco, trazido de zoológicos da Espanha e Dinamarca, formou o núcleo do grupo. Eles foram acompanhados de duas crias nascidas ainda em cativeiro na Argentina, adaptadas ao novo ambiente antes da liberação.
Os animais passaram por quarentena rigorosa e testes genéticos para evitar doenças e garantir diversidade biológica. Após esse período, foram colocados em recintos de adaptação — grandes áreas cercadas onde aprenderam a caçar peixes vivos e reconhecer sons e cheiros do ambiente natural.
O método da liberação gradual
Diferente de outras reintroduções, o projeto optou pela técnica conhecida como soft release — uma liberação controlada, que permite aos animais saírem gradualmente do cativeiro para o ambiente natural. Assim, podem retornar ao abrigo em caso de dificuldade para encontrar alimento ou abrigo.
A equipe instalou dispositivos de rastreamento nos indivíduos reintroduzidos para acompanhar seus deslocamentos e avaliar seu comportamento. As primeiras semanas mostraram resultados promissores: as lontras começaram a explorar os canais do Iberá e a pescar por conta própria.
Desafios e riscos do projeto
Questões genéticas e sanitárias
Um dos maiores desafios é garantir variabilidade genética. Como os exemplares iniciais vieram de zoológicos europeus, o número reduzido de fundadores pode limitar a diversidade. Por isso, novas introduções de outros indivíduos são planejadas para os próximos anos.
Também havia o temor de que os animais transportassem patógenos desconhecidos. Para evitar esse risco, o projeto seguiu protocolos veterinários de padrão internacional e contou com acompanhamento de laboratórios especializados em fauna silvestre.
Adaptação comportamental
Animais criados em cativeiro perdem parte de suas habilidades de caça e defesa. Para minimizar esse impacto, o time técnico simulou situações de vida selvagem, incluindo introdução de presas vivas e estímulos auditivos.
Mesmo assim, a adaptação completa ainda é uma incógnita. Fatores como clima, competição por alimento e qualidade da água podem interferir na sobrevivência a longo prazo.
Envolvimento das comunidades locais
Outro ponto crucial é a relação com as populações que vivem próximas ao parque. Para evitar conflitos, o projeto inclui programas de educação ambiental e turismo sustentável, incentivando moradores a atuarem como guias e protetores da fauna.
Com isso, a presença da lontra pode se converter em fonte de renda, atraindo turistas interessados em observar a espécie em seu habitat natural.
Um novo modelo de conservação
Rewilding: a natureza em reconstrução
A reintrodução da lontra-gigante se insere em um conceito global conhecido como rewilding, que significa “re-selvagerizar” os ecossistemas. A ideia é restaurar as funções naturais das áreas degradadas, devolvendo espécies que foram extintas localmente.
Esse método, que já foi aplicado com sucesso em países da Europa e na América do Norte, está ganhando força na América do Sul graças a iniciativas como a de Iberá. A presença da lontra deve ajudar a restabelecer o equilíbrio das cadeias tróficas e a qualidade da água dos banhados.
Efeitos ecológicos esperados
Com o retorno do predador de topo, a expectativa é que haja redução no número de peixes invasores e aumento da diversidade de espécies nativas. As lontras também são importantes para a dispersão de nutrientes e podem indicar a saúde dos ambientes aquáticos.
A longo prazo, o projeto pretende criar corredores ecológicos ligando o Iberá a outras bacias do norte argentino, para que a espécie volte a ocupar seu território histórico.
Impacto simbólico e global
Esperança para outras espécies
O caso da lontra-gigante se tornou exemplo de que extinções locais podem ser revertidas. A história inspira projetos semelhantes para onças-pintadas, antas e araras-azuis em outras partes do continente.
Especialistas afirmam que o retorno da espécie reforça a importância da cooperação entre governos, instituições científicas e comunidades locais. É também um lembrete de que a conservação não é apenas uma questão ecológica, mas também cultural e política.
Um símbolo do futuro da biodiversidade sul-americana
A volta da lontra-gigante ao território argentino é uma vitória para a ciência e para a sociedade. Ela demonstra que, com esforço contínuo e planejamento, é possível restaurar ecossistemas inteiros e recuperar a confiança nas políticas ambientais do continente.
O sucesso desse projeto poderá influenciar ações semelhantes no Pantanal, Amazônia e Cerrado, regiões onde a pressão humana ainda ameaça espécies fundamentais.
Considerações finais
A reintrodução da lontra-gigante no Parque Iberá é mais do que um feito biológico — é um renascimento ambiental. O animal, desaparecido por quase quatro décadas, retorna como símbolo de esperança e exemplo de como o trabalho conjunto entre ciência, governo e sociedade pode transformar a realidade da conservação na América do Sul.
Se conseguir se estabelecer e reproduzir, a lontra-gigante não apenas restaurará o equilíbrio ecológico dos rios argentinos, mas também marcará o início de uma nova era: a de reconciliação entre o homem e a natureza.













